Sobre o coração no Islã

“Em quase todas as culturas no mundo as pessoas usam metáforas que, direta ou indiretamente, aludem ao coração. O equivalente árabe para âmago (que originalmente no latim significava coração) é conhecido como lubb, que também se refere ao coração, mas ao mesmo tempo ao intelecto e à essência de algo.

Os antigos estavam cientes das doenças espirituais do coração e essa compreensão certamente está na essência dos ensinamentos islâmicos. O profeta Muhammad disse: “A diferença entre aquele que se lembra de Deus e o que não o faz é como a diferença entre o vivo e o morto.” Em essência, [no Islã] o crente é alguém cujo coração está vivo. 

O coração está ligeiramente à esquerda de nossos corpos. Duas línguas sagradas, o árabe e o hebraico, são escritas da direita para a esquerda, em direção ao coração, espelhando o propósito de escrever, ou seja, afetar o coração. Deve-se também considerar o ritual de andar ao redor da Antiga Casa (ou Caaba) em Meca, durante a peregrinação. É realizada no sentido anti-horário, com o lado esquerdo do adorador voltado para a Casa - com o coração inclinado para nos lembrar de Deus e de Sua presença na vida da humanidade. 

Sabemos agora que o coração começa a bater antes de o cérebro estar plenamente formado, ou seja, sem o benefício de um sistema nervoso central totalmente formado. A teoria dominante afirma que o sistema nervoso central controla todo o ser humano, com o cérebro em seu centro. Ainda assim, sabemos que o sistema nervoso central não inicia as batidas do coração, mas que ele é de fato autoiniciado, ou como dizemos, é iniciado por Deus. Também sabemos que mesmo que o coração tenha todas as suas conexões interrompidas (como ocorre em um transplante de coração), continua a bater. 

Muitos no ocidente têm proferido que o cérebro é o centro da consciência. Mas no pensamento islâmico tradicional - como em outras tradições - o coração é visto como o centro de nosso ser. O Alcorão, por exemplo, fala das pessoas que têm corações com os quais não compreendem (7:179). 
Então, entendemos que o centro do intelecto e da consciência humana é o coração, não o cérebro. Somente em tempos recentes descobrimos que existem mais de 40.000 neurônios no coração. Em outras palavras, existem células no coração que se comunicam com o cérebro. Enquanto o cérebro envia mensagens para o coração, o coração também envia mensagens para o cérebro.

Dois fisiologistas nos anos 1970, John e Beatrice Lacey, conduziram um estudo e constataram que o cérebro enviava mensagens para o coração, mas o coração não obedecia automaticamente as mensagens. Às vezes o coração acelerava, outras reduzia o ritmo, indicando que o coração tem seu próprio tipo de inteligência. O cérebro recebe sinais do coração por meio da amídala, tálamo e córtex cerebral. A amídala está relacionada às emoções, enquanto que o córtex ou neocórtex se relaciona com aprendizado e raciocínio. Embora essa interação seja algo que não entendamos plenamente de um ponto de vista fisiólogico, sabemos que o coração é um órgão extremamente sofisticado com segredos ainda velados para nós.

O profeta do Islã falou do coração como um repositório de conhecimento e um recipiente sensível às ações do corpo. Disse, por exemplo, que más ações irritam o coração. Então, o coração percebe uma má ação. Quando alguém comete um crime, o faz primeiro contra seu próprio coração, que então afeta todo o ser humano. A pessoa entra em um estado de agitação espiritual e geralmente tenta suprimi-lo. 

Os problemas que vemos em nossa sociedade derivam de ocultar ou suprimir os sintomas de seus problemas. Os agentes usados para isso incluem álcool, drogas, experimentação e desvio sexual, tomada de poder, riqueza, arrogância, busca de fama, etc. Isso permite as pessoas submergirem em um estado de negligência em relação à sua natureza essencial. 

A negligência faz o coração padecer de fome, roubando-lhe seu maná espiritual. Quando as pessoas estão completamente imersas no mundo material, acreditando que esse mundo é tudo que importa e tudo que existe e que não prestarão conta por suas ações, efetivam uma morte espiritual de seus corações. 

Se examinarmos os testes e tribulações, guerras e outros conflitos, todo ato de injustiça sobre a terra, constataremos que estão enraizados nos corações humanos. Ganância, desejo de agredir e explorar, ânsia por se apoderar de recursos naturais, amor desordenado por riqueza e posição e outras enfermidades, são manifestações de doenças encontradas no coração. Se os corações fossem sadios, essas ações não seriam mais uma realidade. 

Se quisermos mudar nosso mundo, não começamos corrigindo o exterior. Ao invés disso, devemos mudar a condição de nosso interior. Tudo que vemos acontecendo fora de nós está, em realidade, vindo do mundo invisível interior. É do mundo invisível que o mundo fenomenal emerge e é do domínio invisível de nossos corações que nascem todas as ações.”

Sheikh Hamza Yusuf

* O sheikh Hamza Yusuf é um estudioso muçulmano americano. Converteu-se ao Islã aos 17 anos de idade (hoje tem 59). Fluente em língua árabe, estudou retórica, recitação corânica, teologia, poesia, lei islâmica e outras disciplinas islâmicas clássicas.  É considerado o sábio muçulmano mais influente no Ocidente.

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