Lua Vermelha
“As causas dos povos nunca prescrevem (...) Eu vivi com eles, eu sofri com eles, eu aspirei com eles a esperança para a nossa redenção comum ou resgate, porque esta redenção ou será comum ou não nunca vai ser. " Blas Infante, Pai da Patria Andaluza, assassinado há 81 anos pelas Falanges fascistas de Franco, em seu diário relatando a visita ao Marrocos.´
Uma das grandes
histórias que ainda está por ser contada é a resistência mourisca
à chamada “Reconquista” em Portugal e Espanha. Falamos não só
da história de como uma terra onde várias nações e religiões
floresciam em conjunto tornou-se o primeiro exercício da política
genocida de “Um Estado, um Rei, Uma Fé” que desde então vem
dizimando a humanidade, mas falamos também e principalmente, da
obstinada resistência de uma população oprimida lutando contra
todas as perspectivas para praticar a sua fé.
A nossa grande “nakba”
ibérica não acabou com a expulsão dos muçulmanos e judeus da
Espanha e Portugal – em Portugal o primeiro édito de expulsão
completa 520 anos agora em outubro de 2017 – quando dezenas de
milhares tiveram de abandonar às pressas tudo que tinham e se tornar
exilados ou corromper as autoridades para permanecer oculto. Ela
continuou por pelo menos mais dois séculos e meio – o último
grande processo contra muçulmanos ocorre em 1727 na Espanha.
A situação dos
mouriscos – como passaram a ser denominados os muçulmanos que
ficaram – era desalentadora. Eram na sua maioria camponeses pobres,
reduzidos em geral à escravidão, desprovidos de lideranças, porque
os sábios, os religiosos, a antiga burocracia andalusa, os “nobres”,
os grandes mercadores e artistas haviam partido ou, em alguns casos,
se convertido e adquirido os documentos que atestavam a pureza do
sangue – negócio bastante lucrativo para a Inquisição – que
lhes permitia continuar na posse de terras e cargos.
A resistência dos
mouriscos e mudejares – literalmente “domesticados”, como eram
chamados os mouriscos cujas habilidades técnicas garantiam uma
condição um pouco melhor que a massa dos camponeses – se faz nas
mais variadas frentes em um mundo onde até mesmo não beber álcool
ou comer carne de porco – como aponta o Manual do Inquisidor –
eram considerados fortes indícios de “criptoislamismo”.
Tão comovente e
heróico quanto os muitos levantes mouriscos que desde 1501 até 1543
tentam garantir seus direitos é o esforço individual e familiar
para manter sua fé ativa. Significativo, por exemplo, que muitos
dos escritos do “Mancebo de Arevalo” - jovem que desde os 18 anos
percorre as comunidades mouriscas ensinando as práticas religiosas,
os ajudando a se organizar e pregando em mesquitas clandestinas
durante a década de 1530-40, utilizasse a antiga escrita aljamiada
(línguas ibéricas escritas com caracteres árabes) nos livros que
escreveu porque provavelmente já não havia condições de acesso ao
aprendizado do árabe clássico.
A violência do
processo da Inquisição em 1553, em Portugal, contra um liberto de
origem marroquina, Duarte Fernandes, também demonstra esta
vitalidade dos mouriscos em continuar a professar a sua fé, a
despeito dos riscos, perseguições e dificuldades. Segundo os
registros da Inquisição, Duarte Fernandes, aliás Cid (Sidi)
Abdella, seria um marabuto – um mestre sufi – que trabalhava na
corte portuguesa como tradutor, mas mantinha uma mesquita secreta na
Estrebaria Real onde reunia um grupo de mouriscos – tanto escravos
como libertos, tanto nativos quanto africanos – para falar sobre
religião.
Um dos estigmas que
eram impostos aos mouriscos tolerados – como consta nas Ordenações
Filipinas de Portugal publicadas em 1603, portanto mais de 100 anos
depois da expulsão oficial ainda havia mouriscos e a inquietação
gerada por eles – era a obrigação de usar uma Lua Vermelha
costurado no ombro. O amplo desconhecimento deste fato pelos
muçulmanos brasileiros – que em muitos sentidos tem na cultura
andalusa e mourisca seu referencial cultural mais próximo, no
sentido de que ela impregna profundamente a brasileira – já por si
demonstra o quanto desta história ainda está por ser contada.
Nestes tempos de
crescente intolerância e discriminação onde ecos dos discursos
inquisitoriais e homogeneizadores podem ser ouvidos claramente o
convite que fazemos é para que não só os muçulmanos mas todos
aqueles que tem compromisso com a liberdade de crença, com o
humanismo e com a democracia transformem aquele símbolo de
humilhação da Lua Vermelha em um símbolo de orgulho, orgulho da
nossa história, das nossas raízes, da cultura de tolerância que um
dia floresceu em al-Andalus.